FORMAÇÃO DE PROFESSORES: QUESTÕES PARA UMA REFLEXÃO À LUZ DA TEORIA HISTÓRICO-SOCIAL
MARTINS FILHO, Altino José/UFSC – altinojm@ig.com.br
MARTINS FILHO, Lourival José/UDESC – f2lourival@udesc.br
EIXO: Formação de Professores/n.10
Agência Financiadora: Sem Financiamento
1 – Do ponto de partida às primeiras questões sobre a Formação de Professores
Neste trabalho pretendemos apontar alguns aspectos acerca do debate teórico sobre concepções educacionais e filosóficas de formação de professores. O estudo vincula-se à produção de conhecimentos no campo da Educação Infantil. O tema que trazemos aborda de maneira preliminar parte dos resultados de uma pesquisa de natureza crítico-analítica (DUARTE, 2005) que está sendo desenvolvida em uma universidade publica da Região Sul do Brasil. A referida pesquisa discute a produção de conhecimentos sobre a formação de professores e o trabalho docente na educação infantil, seguindo o objetivo de oferecer um panorama sobre a condição da produção. Neste artigo especificamente estaremos problematizando teorias e tendências para a formação de professores que vêm se revelando contemporaneamente como modelo de formação a ser seguido e referenciado como novidade educacional. Trata-se, com isto, apontar elementos da teoria histórico-social que a pesquisa vem demonstrando imprescindível para o aprofundamento do quadro teórico-metodológico na produção de conhecimentos para a formação de professores.
Com base em Duarte (2001) apresentamos a premissa que advoga a necessidade da constituição de um campo de estudos e pesquisas que denominamos de teoria histórico-social da formação do indivíduo, que sintetize os múltiplos aspectos desse processo de formação, incorporando as contribuições das várias ciências humanas. Para o autor essa incorporação, entretanto, tem como primeiro momento, a análise crítica das concepções de homem e de indivíduo que fundamentam as várias correntes existentes em cada uma das ciências humanas. Nesse contexto que adotamos a perspectiva histórico-social como opção teórica e metodológica deste trabalho.
A partir da consideração de Duarte (2001), tomamos como desafio caracterizar de maneira crítica algumas concepções sobre a formação de professores, principalmente as que têm sido consideradas e divulgadas por muitos organismos internacionais, pela mídia, pelas políticas publicas e por alguns setores significativos da academia. Concepções que sob enfoques diversos vêm propagando formar o professor-reflexivo, o professor-prático-reflexivo e o professor-pesquisador (ARCE, 2001; DUARTE, 2001, 2005; MORAES, 2004). Tais concepções que estão sendo difundidas principalmente no Brasil a partir do final do século XX e início do século XXI, em nossa reflexão, estão calcadas pelo viés da “epistemologia da prática”. Moraes (2004, p.153) formula a tese de que são propostas de formação de professores que advogam sua competência para responder às questões – e apenas essas – de suas tarefas cotidianas. Para esses profissionais uma formação aligeirada basta. A análise apresentada por nós compartilha da mesma tese.
Segundo Arce (2001), a perspectiva que defende uma formação na linha da “epistemologia da prática” os cursos de formação de professores não devem ficar “gastando tempo” inculcando conteúdos. Em tal abordagem, mais importante é o professor entender como o aluno conhece, por isso o destaque aos estudos do cotidiano em-si, compreendido como fontes da formação dos professores. Neste caso, o “professor-reflexivo, o professor-pesquisador e o professor-prático-reflexivo constituem qualidades fundamentais ao professor para solucionar os problemas cotidianos e também para desenvolver nos alunos essas mesmas habilidades”. As necessidades práticas e interesses do professor devem estar em primeiro plano.
Nesse sentido, questionamos o pretenso caráter utilitarista e pragmático das proposições difundidas contemporaneamente para a formação de professores. Concordando com Arce (2001) e Duarte (2001, 2005), avaliamos que tais proposições significam mais um retrocesso do que um avanço para os cursos de formação de professores, pois de maneira exacerbada conduzem à negação da importância da apropriação do conhecimento por parte do professor em seu processo formativo, contribuindo assim para a desqualificação, desintelectualização e desprofissionalização do professor. Arce (2001, p.59) se posiciona sobre deveria ser a formação do professor, destacando que:
A formação do professor precisa contemplar as diversas áreas de conhecimento humano para que sua cultura seja vasta. Fornecendo-lhe assim elementos para que possa ensinar os alunos, possibilitando-lhes enxergar a humanidade, seus anseios e necessidades e não somente os seus próprios interesses imediatos. O conhecimento deve inquietar, ser uma vacina contra a apatia e o egoísmo. Ainda não possuímos melhor forma de fazer isso do que a leitura e o ensino. Eis o que a educação do professor deveria fazer.
Salientamos, portanto, que já existe um número considerável de estudos que procuram caracterizar e denunciar o caráter simplista e que lutam contra a massificação dos cursos de formação de professores. Pesquisadores como – (ARCE, 2001; DUARTE, 2001, 2005; MORAES, 2004; STEMMER, 2006; SAVIANI, 1985,2003; SHIROMA, 2003) – indicam que a supervalorização dispensada à formação do professor por meio de vieses que enaltecem o cotidiano em-si, a prática imediata, a prática reflexiva e espontaneísta fazem acompanhar, contraditoriamente, uma formação fragmentada, emergencial, instrumental, utilitarista e esvaziada de conteúdos teóricos e críticos. Esta formação recorrente das exigências do sistema capitalista e de determinações políticas baseia-se no âmbito da instrumentalização escolar. Isto preocupa, sobretudo pelo fato do empobrecimento que vem causando no campo educacional, com uma visível perca na qualidade do desenvolvimento intelectual do professor e no processo de formação do próprio ser humano de maneira geral.
Observamos que as propostas de formação de professores se esquivam de uma análise da apreensão do real em sua concreticidade. Assiste-se atualmente uma descaracterização do papel do professor em sua complexidade. Este profissional vem sendo alijado de sua função precípua, qual seja – o de transmissor dos conhecimentos produzidos e acumulados ao longo da história da humanidade. Nota-se que esta descaracterização tem provocado a desintelectualização do trabalho docente, fortalecendo uma ontologia velada, estreitamente vinculada a uma prática imediatista e voltada em si mesma. Pode-se, assim considerar, que a formação de professores no momento atual se encontra mergulhada apenas nas manifestações empíricas, que permite apenas uma apreensão superficial da própria prática, não permitindo a este profissional distinguir o essencial do circunstancial, alargando o mundo das aparências e distanciando-se da sua essência.
Essa situação é preocupante e nos interessa porque, a nosso ver, uma formação de professores (seja inicial ou continuada) sólida, consistente, com rigor teórico e de qualidade (tanto teórica como metodológica) pode de alguma forma contribuir para fortalecer uma proposta contra-hegemônica de sociedade, principalmente quando procura interferir positivamente no processo de constituição de humanização do próprio ser humano. Sendo assim, ao problematizar questões relativas sobre a formação de professores devemos considerá-las a partir das transformações sociais em suas múltiplas determinações históricas. Nesse sentido que questionamos: Á quem interessa os cursos de formação de professores atualmente estarem configurados sob o viés da epistemologia da prática e voltados para os problemas do cotidiano em-si? Em que medida os programas de formação de professores que apenas consideram a reflexão sobre a prática imediata podem ser considerados os responsáveis pela restrição do papel do professor como executor de tarefas, esvaziando sua formação de reflexões profundas sobre os processos educativos?
Como assevera Rossler (2006, p.4) é preocupante e inaceitável a maneira como nossos governantes vêm conduzindo as questões relativas à nossa educação. O autor aponta que assistimos de camarote o empobrecimento crescente da cultura, em todos os seus níveis, que por sua vez implica o empobrecimento da formação e do desenvolvimento intelectual, afetivo e moral do ser humano. Desta forma, as tendências contemporâneas de formação para os professores, não poderiam estar muito diferentes deste processo histórico e social contraditório e de completa alienação. Ou melhor, não poderiam encontrar-se isentas dos efeitos devastadores cada vez mais irracional e fetichista da lógica objetiva da sociedade capitalista. Esta situação vem sendo discutida e causando inquietação aos pesquisadores, que sob a perspectiva histórico-social defendem uma formação humana que forneça elementos aos sujeitos para a compreensão mais adequada do real e, em decorrência, criando diversas possibilidades de intervenção na realidade no sentido de sua transformação social.
Neste caso, afirmamos que a formação do professor encontra-se à mercê dos fortes ventos que sopram a ideologia neoliberal e pós-moderna. Perspectivas que vêm descaracterizando o trabalho docente do professor da sua essencialidade; seja no desenvolvimento da formação da individualidade humana, na transmissão dos conhecimentos ou na articulação da cultura universal do gênero humano que vem sendo construída ao longo do processo histórico.
Contra estas tendências pedagógicas e de formação de professores que queremos marcar a importância do acesso e da apropriação da produção de conhecimentos, tanto pelos professores que estão em formação inicial ou continuada ou como atividade central do trabalho docente. Entendemos ser este o mecanismo primordial para que as camadas trabalhadoras da sociedade possam desenvolver reflexões críticas sobre a compreensão da realidade objetiva. Neste quadro, a questão da produção e transmissão de conhecimentos é basilar não apenas na formação de professores, mas na prática cotidiana da sala de aula. Há que se investir em programas de formação de professores que não se entreguem ao “recuo da teoria”, isto é, que supere a supressão das discussões e reflexões de caráter teórico.
Nesse sentido, o texto desenvolve reflexões teóricas introdutórias para um projeto sobre formação de professores considerando a abordagem histórico-social na formação do ser humano em geral.
2 – Questões sobre a Formação de Professores: superando a lógica capitalista e centrando-se na perspectiva histórico-social
Entendemos estar em jogo um dos preceitos fundamentais com a concepção de educação subjacente à lógica do capitalismo, a qual nos impõe uma condição de ação cada vez mais dependente das relações mercadológicas. Tal lógica compreende a educação institucionalizada como um serviço de satisfação ao cliente ou uma mercadoria comercializável, e não como um bem público e direito de todos os seres humanos. Segundo Arce (2001), a inserção da educação no mercado competitivo caracteriza-se pela descentralização, onde a educação deixa de ser um direito para ser tornar mercadoria.
No que se refere a uma análise da relação do desenvolvimento do capitalismo com o desenvolvimento da educação escolar no âmbito brasileiro, Duarte (2001) evidencia em seus vários trabalhos uma tendência essencialmente negativa, o que contribui para a manutenção da hegemonia da concepção liberal-burguesa de homem, de sociedade e de educação (Idem, p.24).
Embora hoje possamos reconhecer a necessidade de se travar uma luta pela superação da sociedade capitalista, parece-nos que cada vez mais, somos levados a acreditar que seja possível realizar tal tarefa por meio da fragmentação da realidade humana. Ou seja, que o cotidiano isolado de sua totalidade é suficiente para subverter, transformar e enxergar a condição de exploração na qual a sociedade se encontra. Desta forma, entendemos que seja necessária uma aproximação com o real em sua totalidade e concreticidade. É neste sentido que a abordagem histórico-social nos ajuda compreender o contexto em que a formação de professores atualmente está calcada, já que em sua perspectiva, para se entender o contexto é necessário buscar compreender o processo histórico que o envolve.
Portanto, falar em transformação da sociedade é falar em organização dos sistemas educacionais, principalmente quando se vive em um país como o Brasil, que se deixa influenciar muito rápido pelas políticas internacionais de exploração e/ou pelos modismos criados no campo da educação. Deste modo, acreditamos que a educação seja um dos canais para a mudança da sociedade, é a via de formar os sujeitos em cidadãos ativos na sociedade, capazes de dar direção à via para além dos estreitos limites do individualismo. Entretanto, como afirma Duarte (1996, p.40-41), não se trata de supor ingenuamente que a educação possa, por si só, superar a alienação produzida pelas relações capitalistas. No caso da Educação de modo geral, o que vemos na realidade, é uma situação digna de sérias preocupações. Principalmente, no que concerne às escolas e salas de aula, onde o reflexo do quadro econômico desumanizante, o descaso dos políticos e a desigualdade social do país são mais devastadores vazio de sentido.
Assim, como vivemos a ascensão do capitalismo nos tempos atuais, podemos concluir que as propostas de políticas para a educação tendem a obedecer uma lógica primeiramente mercantil. Obedecendo esta lógica, a educação é elevada à função de instruir e adaptar, preparando a inteligência para resolver problemas concretos de uma realidade imediata circunscrita às necessidades primárias de sobrevivência. Um exemplo são as políticas educacionais atuais, que em sintonia com as ideologias do capitalismo, têm apontado para um verdadeiro arrevesamento da teoria na formação de professores, contribuindo assim, contudo, para uma visível perda na qualidade da formação teórica e prática dos professores.
Contraponto-se a esta situação, a abordagem histórico-social, sob a perspectiva do materialismo histórico dialético, compreende que a educação escolar pode ser considerada a atividade, por excelência, do processo de constituição de humanização do ser humano. Entretanto, considerando o panorama dos cursos de formação de professores e as políticas educacionais circunscritas ao Ministério da Educação do nosso país, podemos dizer que a apropriação da teoria histórico-social seja um instrumento fundamental para se contrapor as questões que vêm conduzindo a nossa educação, principalmente quando se pretende inserir a educação na luta contra-hegemônica.
Pautando-nos em Cardoso (2004), podemos afirmar que a educação escolar pública desde sua gênese de criação e expansão, serviu aos interesses de uma determinada classe, que na época estava se tornando hegemônica: a classe burguesa. Portanto, a educação publica foi pensada como estratégia para a concretização dos então novos ideais burgueses. A formação de cidadãos e o domínio mais generalizado de saberes eram mesmo uma condição para a consolidação do modo capitalista de produzir e do seu modo de gestão política, a democracia burguesa.
De início, a burguesia travou uma luta revolucionária contra os preceitos da sociedade aristocrática, apregoando novas ideologias contra todo o arcabouço político, econômico, religioso e ideológico daquela sociedade. Assim é que a educação pública requerida para a formação das novas gerações burguesas foi proposta de forma universal a todos os sujeitos da sociedade. Há então um vínculo claro entre educação pública e a construção do Estado nacional burguês, sendo constituído sob a forma de uma democracia burguesa (CARDOSO, 2004). Portanto, a escola pública foi projetada e expandida tendo como referência os princípios da sociedade burguesa, classe social em ascensão no período da expansão do ensino público.
Desta forma, a burguesia sendo atualmente a classe dominante, não necessita mais investir ou proclamar os seus próprios princípios, quais sejam: - igualdade, liberdade e fraternidade (lemas burgueses da revolução) – por conseqüência não necessita mais da escola pública, que, pelo contrário, serve aos filhos das demais classes. Nessa direção, que consideramos o estudo da matriz teórica marxista, como de primordial importância para findarmos uma crítica aos moldes da escola contemporânea. Tal crítica também precisa ir de encontro aos anseios do próprio capitalismo, pois ele apropriou-se da escola, transformando-a em negócio, altamente lucrativo, tanto financeiro quanto ideológico. Frente a isso, concordamos novamente com Cardoso (2004, p.06), quando afirma que, a escola é um aparelho ou um dispositivo social que se estabelece no capitalismo como um dos pilares da reprodução social.
Cardoso (2004, p.6) defende uma educação que abra corações e mentes e que ao mesmo tempo possa desenvolver a sensibilidade, a sutileza, os valores humanos, a consciência crítica e a própria humanidade em cada sujeito. Percebemos que não desvaloriza a figura do professor e/ou do processo educativo que envolve o ensino e a aprendizagem, ao contrário, luta contra o empobrecimento ou mesmo o esvaziamento dos sentidos mais próprios e amplos do conhecimento. Assim, defende que o homem deveria poder ser dotado de múltiplas aptidões, tanto manuais quanto intelectuais e este deveria ser o objetivo das práticas educativas. Nessa linha de raciocínio, recorremos a Marx (2002), que concebe o “homem na sua totalidade” como um ser ontologicamente social, no intuito de almejar uma possibilidade de uma sociedade futura, pensada em contraposição à sociedade constituída sobre a divisão do trabalho (sociedade de classes) e aos efeitos mutilantes do decorrente parcelamento das tarefas.
Os processos educativos, assim como a formação docente, nesta perspectiva carregam consigo a função de desenvolver no sujeito a criticidade, a complexidade do mundo objetivo, a pluralidade social e de classe, a complexificação do conhecimento historicamente acumulado, para a partir daí, tentar romper com a massificação conformista, reducionista e simplificadora da educação escolar, a qual retira do professor a condição de intelectual e transforma o ensino em atividade meramente instrumental, com conteúdo de caráter utilitário e pragmático.
Urge, então, reafirmar o que Cardoso (2004) nos adverte: a perspectiva de transformação social nas sociedades contemporâneas exige a crítica. Porém somente a crítica não basta. A critica transformadora é a critica combatente, construída nas lutas concretas pela transformação. Que não permitimos que nos roubem o que pouco nos resta, ou seja, a condição de sujeitos capazes de criticar e lutar por uma transformação social digna para todos.
Trata-se, de defender uma educação escolar que sustente a necessidade de uma educação formadora (de discernimento, de critica e de liberdade), instrutora (de conteúdos, saberes) e estreitamente vinculada à produção de conhecimentos. Parece-nos ser este o reconhecimento da necessidade de uma educação escolar com instrução mais extensa, mais profunda e mais aberta para a formação da razão e o aperfeiçoamento da crítica.
Nesse sentido é que estamos questionando o pretenso caráter empirista das proposições sobre formação profissional na educação básica. O qual vem determinando o empobrecimento dos conteúdos da formação, por meio de sua adaptação pragmática à realidade cultural imediata e alienada dos professores, bem como disseminando pelo discurso e por suas propostas a tendência que secundariza o professor como transmissor de conhecimentos produzidos e acumulados pelas gerações passadas ao longo da história da humanidade, pois este mesmo discurso e estas tendências pedagógicas defendem a centralidade do aluno nos processos de ensino/aprendizagem e a construção autônoma dos conhecimentos (DUARTE, 2001; ARCE, 2000; ROSSLER, 2006). Para Duarte (2001), em casos extremos algumas propostas e tendências pedagógicas em sintonia com o lema “aprender a aprender” rejeitam, inclusive, a própria objetividade do conhecimento, isto é, seu caráter objetivo e transmissível. Frente a isto, concordamos com Duarte (2001, p.620) quando afirma que:
De pouco ou nada servirá mantermos a formação de professores nas universidades se o conteúdo dessa formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo, etc.
Em relação a estas questões, as reflexões de Saviani (1999) são essenciais, pois nos suscitam pensar na relação direta entre a lógica da racionalidade financeira e a própria lógica da estrutura da sociedade capitalista, que tem como conseqüência, invariavelmente, a subordinação das políticas sociais à política econômica. E que nas condições atuais faz com que a racionalidade financeira passe a comandar as políticas de modo geral e conseqüentemente, as políticas sociais, dando origem à chamada abordagem “neoliberal das políticas públicas”.
Neste contexto, chamamos a atenção para o fato de que quando procuramos estudar a política educacional de acordo com as categorias próprias do pensamento neoliberal a educação é sempre posta em xeque. Pois os problemas que se identificam como causadores da crise dos sistemas educacionais na atualidade, são considerados elementos integrantes da própria crise que perpassa a forma de regulação assumida pelo Estado neste século que é a orientação para a formação de um Estado-Mínimo, cujas responsabilidades sociais a ele dirigidas ficam cada vez mais restritas. Assim, concebe-se que a política educacional, bem como outras políticas sociais, será bem sucedida, na medida em que tenha por orientação principal os ditames e as leis que regem os mercados, ou seja, a orientação na direção do privado.
Como já salientamos, nossa proposta é indicar vieses que colocam a formação de professores sob a lógica do capitalismo, problematizando concepções e propostas de formação que se fundamentam pela epistemologia da prática. Linha de pesquisa que se deixa seduzir pelo empiricismo mais ingênuo ou pela construção de teorias que se justificam por sua utilidade instrumental. Teorias que sob a perspectiva pragmática defendem que o professor é um agente reflexivo e que sua atuação está pautada no horizonte somente da prática pedagógica. A recusa completa por perspectivas que supervalorizam a prática pedagógica em detrimento da uma formação teórica e crítica se dá pelo fato que quando se reduz o âmbito de exigência de qualificação para ingresso na profissão ou se aligeira a formação (Shiroma, 2003, p.65) a profissão sofre uma violenta desqualificação em todas as suas dimensões. Shiroma (2003) pontua que a preocupação das reformas educacionais a partir da década de 1990, foi a de modelar um novo perfil de professor competente tecnicamente e inofensivo politicamente. A partir dos estudos desta autora podemos afirmar que:
Formar um professor-profissional, nesses moldes, não significa que este viesse a ser mais qualificado, mas apenas mais competente, o que vale dizer “mais adequado”, apto e cooptado. Mesmo que o professor apresentasse maior autonomia de ação, as opções dentro do espaço de trabalho, o aumento da flexibilidade funcional e sua transformação em expert iriam colocá-lo em dificuldade para compreender que as soluções para os problemas não advém apenas da reflexão sobre sua prática, especialmente quando enclausurada no espaço da sala de aula ou limitada pelos muros das escolares. Isto é, a reflexão sobre a prática é necessária, porém insuficiente (Shiroma, 2003, p.76-77).
Nesse sentido, Arce (2000) nos coloca como desafio a necessidade do professor desenvolver um olhar investigativo fundamentado na teoria, no sentido de reorientar o planejamento da instituição. Ser professor nestes termos é ser um intelectual que planeja, repensa e replaneja o seu fazer pedagógico e isso, por sua vez, exige leitura, análise e interpretação.
Essas perspectivas de formação que colocam os professores como sujeitos reflexivos a partir de sua prática pedagógica, para nós estão conciliadas as políticas neoliberais de formação de professores cujo objetivo é a formação técnica, didática e metodologicamente preparada para a aplicação de manuais, sem conhecimento científico e análise crítica por parte dos professores.
Nesta perspectiva, parece-nos claro que a permanência no cotidiano, centrando-se em uma reflexão somente a partir da prática, sem que se tenha um olhar de estranheza e por isso mesmo de distanciamento, serve apenas para tornar essa realidade cada vez mais esvaziada do seu caráter político-social de apropriação do conhecimento e de formação de consciências para a transformação das condições concretas de vida, em especial das condições da prática pedagógica.
Característica esta essencial para o resgate do aspecto de intelectualidade do professor que como expressa Gramsci (apud. Duarte 1996, p. 72).
Deve-se convencer a muita gente que o estudo é também um trabalho e muito fatigante, com um tirocínio particular próprio, não só muscular-nervoso, mas intelectual: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e mesmo sofrimento (...) essas questões podem se tornar muito ásperas e será preciso resistir à tendência a tornar fácil o que não pode sê-lo sem ser desnaturado.
De acordo com as palavras de Gramsci o professor deve resistir à tendência de tornar fácil a tarefa de tornar-se professor, num momento no qual as políticas educacionais convergem para a formação aligeirada e totalmente alienada dos processos políticos, econômicos e sociais que colocam em xeque não só a “educação para todos”, como também uma “formação para todos”, na medida em que a garantia da formação será dada àqueles que puderem comprá-la. Desta forma, retira-se o que deveria ser prioridade na formação de professores: a apropriação de conhecimentos. Pensar o processo de formação dos/as professores/as é de primordial importância, principalmente quando se observa o esvaziamento da teoria neste processo, o qual se revela mergulhado em uma perspectiva que aponta para uma epistemologia da prática, entregando-se muito facilmente a lógica do capitalismo.
3 – Questões sobre a Formação de Professores no campo da educação infantil: sínteses finais – porém – provisórias para este trabalho
Tendo em vista as questões dispostas neste trabalho, como possibilidades de debate e reflexão sobre a formação de professores, precisamos insistir na estratégia a qual Saviani (1999) chama de “resistência ativa” na qual propõe aguçar a nossa consciência sobre a necessidade de se assumir uma postura mais ativa, participativa e transformadora do estado de coisas vigente. Com isto, não propomos uma revolução, até porque não será possível tal intento sem um engajamento de toda a sociedade; mas, acreditamos, contudo, na superação (via resistência) dessa formação que estamos considerando fragmentada e técnica. Buscando para tanto a garantia da formação enquanto um direito dos profissionais da educação, em geral, e, especificamente, dos profissionais da educação infantil.
Tratando-se especificamente do campo da educação infantil, isto parece ser essencial, já que a área afirma que a profissionalização do professor da infância ainda está em construção, ou como afirmam alguns autores ainda está sendo inventada . No caso da educação infantil não é possível concordar ou legitimar modelos feministas de domesticidade, de boa mãe, de mulher doce, ingênua, generosa, paciente – como sendo o único perfil para a construção da identidade do profissional da infância – o perfil profissional para além da “natureza feminina” é construído e constitutivo do processo formativo e no exercício profissional da docência. Desta maneira, acreditamos que somente uma formação consistente e teórico-crítica fornecerá subsídio para formar este profissional. Isto vai muito além do conhecimento do cotidiano imediato e da reflexão a partir da prática pedagógica.
Durante a década de 1990, o Ministério da Educação e Cultura /MEC empenhou-se na discussão e elaboração de uma Política Nacional de Educação Infantil. Podemos citar o documento Política de Educação Infantil, publicado em outubro de 1993, o qual aponta que o adulto que aturá na área deve ser reconhecido como profissional. A partir daí buscou-se assegurar melhores condições de trabalho para este profissional, plano de carreira, salário e formação condizente com seu papel profissional.
Acompanhando essa conquista legal, já em 1994, foi organizado um outro documento, proveniente de um Encontro Técnico de Formação do Profissional de Educação Infantil, com objetivo de fornecer subsídios para uma política de formação de profissionais de educação infantil. Este novo documento publicado com o título “Por uma política de formação do profissional de educação infantil” reuniu artigos referentes às conferências proferidas no seminário por pesquisadores convidados pela Coordenadoria Geral de Educação Infantil (COEDI), órgão vinculado ao Ministério da Educação, que vem apontando a necessidade de elaboração de um perfil próprio de formação do professor de educação infantil. Como podemos verificar a questão da profissionalização e da exigência de formação especifica para o professor de educação infantil no Brasil é recente.
Importa ressaltar que muitas das ações da formação do profissional da infância estavam voltadas para prover o Desenvolvimento infantil (e não Educação Infantil) e as estratégias de formação para este nível de educação historicamente voltou-se para o combate à pobreza ou a melhoria da eficácia do ensino fundamental. Os investimentos dos governos consideram a expansão sob a ótica de programas não-formais, a baixo custo, através da participação da comunidades com serviços voluntários.
Podemos considerar que a partir destes dispositivos cresce as pesquisas que se interessam em analisar a situação da formação de professores de educação infantil, bem como emergem muitas idéias sobre a necessidade de redefinir a função social das instituições de educação infantil. Segundo Raupp (2006, p.06) foi a partir de 1993 que as questões sobre a formação de professores em educação infantil entraram para a agenda dos pesquisadores, a autora analisa o caso catarinense. Afirma que a Universidade Federal e Santa Catarina/UFSC conta com a maioria das pesquisas, no universo entre 1993 até 2004 tive 89% dos estudos. Um dos aspectos que justifica a predominância do número de pesquisas na UFSC é o fato de esta universidade ter criado o primeiro programa de pés-graduação strito sensu em educação em Santa Catarina.
No âmbito nacional, toda a década de 1990 foi palco de grandes avanços na área da formação do professor de educação infantil. Principalmente a partir dos dispositivos e normalização subseqüentes a Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996.
Nesse sentido, trazendo algumas contribuições na indicação de possíveis caminhos a serem trilhados na busca da defesa da formação como direito do professor. Destacamos para esta formação a relação teoria-prática, não no sentido da sobreposição da teoria sobre a prática e vice-versa, mas na mediação da prática pela teoria.
Deste modo, é importante refletir sobre os projetos de formação para profissionais docentes e não-docentes da Educação Infantil, sendo que, tais projetos devem estar relacionados tanto a uma formação estrita (referente ao trabalho cotidiano) quanto a uma formação ampla (referente ao saber historicamente acumulado pela humanidade). De acordo com Khulmann Jr. (2000), as propostas de trabalho para as crianças pequenas estão subordinadas aquilo que é pensado para as crianças maiores. Nestes termos, a especificidade da educação infantil não está na oposição à articulação com o ensino fundamental, ao contrário, esta articulação é imprescindível principalmente para as crianças da pré-escola que logo estarão na primeira série. Porém o ponto de partida para tal articulação não deve ser o ensino fundamental e sim a própria criança, o conhecimento sobre esse sujeito histórico-social.
É no sentido de buscar essa especificidade, que a formação específica do professor de Educação Infantil é fundamental, o que não necessita dispensar dessa formação as bases filosóficas, históricas, sociais e políticas que possibilitam o refletir, o planejar, implementar e avaliar o trabalho com/para as crianças. Já que sabemos que o trabalho nas creches e pré-escolas, com crianças entre 0 a 6 anos de idade exige do profissional que nele trabalha uma multiplicidade de ações de cuidado e educação das crianças.
Entretanto, há que se pensar nas questões práticas referentes a tais propostas de formação, no que se refere às condições objetivas de trabalho que nas instituições de educação que atendem às crianças em período integral, colocam-se antes como um problema do que como uma possível saída. Assim, segundo a pesquisa de Mezacasa (2003) tal problema torna-se visível e a autora nos mostra que a participação nos cursos de formação continuada não se estendia a todas as profissionais da educação, visto que as profissionais da pré-escola tinham prioridade de participação em relação às profissionais da creche. Tal situação reflete a concepção ainda vigente da creche como local de guarda e cuidado e que qualquer pessoa, sendo mulher, pode trabalhar nele sem que para isso tenha formação .
Vale ressaltar como reflexão para tal questão, a contribuição de Kramer (2002) que fala da atribuição que se dá ao trabalho do profissional da educação infantil como sendo de pouca qualificação e de menor valor, fruto de uma ideologia que camufla as precárias condições de trabalho, que esvazia o conteúdo profissional da carreira e desmobiliza os profissionais na reivindicação de seus direitos.
Assim, buscando as contribuições da perspectiva histórico-social urge a necessidade do professor se apropriar do saber historicamente construído para superar o cotidiano cristalizado, problematizando-o, e refletindo sobre ele. Contudo, partir de tal problematização requer a necessidade de uma instrumentalização que são os conhecimentos, as informações, os conceitos, as idéias, etc; na busca de respostas para as demandas práticas. Porém, é por meio da análise teórica e crítica que é possível a ruptura com o pensamento cotidiano por meio da reflexão crítica.
Diante destas propostas de formação, não podemos deixar de enfatizar, que a garantia de uma formação realmente possibilitadora da apropriação do conhecimento, na educação infantil, exige ainda não só a luta pelo direito à formação como também por condições concretas para a sua realização. A formação, nestes termos, exige que se parta da prática pedagógica, problematizando-a, para buscar a sua instrumentalização por meio da teoria e que responda as demandas práticas para se chegar a reflexão da prática social, resultando em mudanças reais nas concepções das profissionais, bem como, na educação e no cuidado das crianças de 0 a 6 anos. Tendo como parceira a universidade, como lócus a instituição e partindo da prática pedagógica das profissionais. Na complementação dessas indicações de possíveis caminhos, precisamos buscar também um intercâmbio entre as diversas instituições de educação da criança de 0 a 6 anos para que as trocas de experiências não se limitem ao espaço restrito de cada instituição e suas parcerias com a universidade, superando, dessa forma, o nosso olhar cristalizado sobre o cotidiano.
REFERÊNCIAS
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