quinta-feira, 4 de junho de 2009

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E OS IMPACTOS NAS UNIVERSIDADES: AS FACULDADES, INSTITUTOS E CENTROS DE EDUCAÇÃO NO OLHO DO FURACÃO.

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E OS IMPACTOS NAS UNIVERSIDADES: AS FACULDADES, INSTITUTOS E CENTROS DE EDUCAÇÃO NO OLHO DO FURACÃO.

MINUTA PARA DEBATE


Ao completar sete anos de governo, Lula encontra-se em meio a dados alarmantes sobre a Educação no Brasil e, ainda, vendo-se compelido a adotar medidas governamentais que, por um lado, buscam responder aos desafios de alterar os péssimos índices educacionais, no que diz respeito ao ensino superior, a qualidade da educação básica e, a formação de professores e, por outro, embatam profundamente a autonomia, gestão e administração universitária.

No olho do furacão de uma profunda crise que, segundo demonstração de Mészáros em sua mais recente obra “A crise estrutural do capital” (Boitempo, 2009), a partir de uma visão histórica e sistêmica sobre a crise do capital, é uma crise que não tem nada de nova, é endêmica, cumulativa, crônica e permanente e suas manifestações são o desemprego estrutural, a destruição ambiental e as guerras permanentes, as Universidades terão que responder. Esta crise, ainda segundo Mészàros vai se tornar a certa altura muito mais profunda, no sentido de invadir não apenas o mundo das finanças globais mais ou menos parasitárias, mas também todos os domínios da nossa vida social, econômica e cultural. Portanto, as Faculdades, Institutos e Centros de Educação, no olho do furacão, terão que responder.

O ensino superior está sendo reformulado e o exemplo é o que indica o Fórum Nacional de Educação Superior (FNES). A Educação Superior desenvolvida nas universidades - em especial as federais, que são ao todo 72, incluindo Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET) - é o local privilegiado para o desenvolvimento da ciência, das humanidades e das artes. A Educação Superior está sendo foco de debates e preocupação dos organismos internacionais. Podemos constatar isto, por exemplo, na Conferência Regional de Educação Superior para América Latina e Caribe (CRES 2008), convocada pelo Instituto Internacional para a Educação Superior na América Latina e Caribe (IESALC), da UNESCO, que ocorreu em junho de 2008 em Cartagena de Índias, na Colômbia. Reuniu-se a comunidade educativa e representação oficial de governos de 34 países da América Latina e Caribe, além de convidados de outros continentes, com o objetivo de “analisar e deliberar sobre a realidade e necessidade de realizar mudanças estratégicas na Educação Superior da região, adequando-a aos desafios do compromisso social, da pesquisa estratégica, da educação para todos e para toda a vida e da integração regional”. Está se buscando rever as funções e o papel exercido pela Educação Superior no país, assim como o de suas instituições – as universidades - em sua capacidade de atender demandas de conhecimento e formação advindas do processo de desenvolvimento socioeconômico e científico e tecnológico, de apoiar a construção da sustentabilidade social e econômica e promover a soberania nacional. O Ministério da Educação participou das discussões e delegou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a participação na elaboração de documento com o objetivo de difundir as bases lançadas para a Educação Superior na América Latina e Caribe. O Conselho Nacional de Educação, com o apoio da Secretaria de Educação Superior, por sua vez, promoveu o Fórum Nacional de Educação Superior (FNES), com o objetivo de mobilizar e buscar subsídios à participação da delegação brasileira na Conferência Mundial de Educação Superior (Paris/França, em julho/2009) e, a partir desta, elaborar documento preliminar sobre a Educação Superior, a ser debatido na Conferência Nacional de Educação Superior, em 2010, e apoiar a revisão do Plano Nacional de Educação para o período 2011-2020. A comissão organizadora do FNES, constituída por seis membros que compõem a Câmara de Educação Superior, foi responsável pela elaboração de Documento Referência, que se constitui base inicial para as discussões. A Chamada Pública do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 01/2009, solicitou contribuições para o Fórum Nacional de Educação Superior (FNES) que aconteceu nos dias 24, 25 e 26 de Maio, no auditório Anísio Teixeira do Conselho Nacional de Educação - SGAS 607 Lote 50 – Brasília – DF. O FNES objetiva refletir, tendo em vista as especificidades da realidade brasileira, sobre o direcionamento das políticas de Educação Superior para o país nos próximos anos. São eixos estruturantes do debate: Democratização do Acesso e Flexibilização de Modelos de Formação; Elevação da Qualidade e Avaliação; Compromisso Social e Inovação. Ou seja, tudo o que está em nossa pauta de discussão na Congregação da FACED/ UFBA.

Quanto ao REUNI, plano de expansão imposto pelo Decreto Nº. 6.096, de 24 De Abril de 2007, que institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, dados apresentados ao Senado Federal, em reunião da Comissão de educação, em audiência pública, ocorrida em maio de 2009 demonstram que o mesmo não atende a necessidade de expansão na área educacional em especial da formação de professores inicial e continuada. O REUNI é uma ação de coerção que induziu os órgãos superiores das instituições a se comprometerem com expansões da ordem de 100%, no número de ingressantes, e de 200%, no das matrículas. Tais números estão por trás da “meta global”, anunciada logo no § 1º do art. 1º do Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, que institui o REUNI: elevar, num prazo de cinco anos, a taxa média de conclusão dos cursos de graduação presenciais para 90% e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para 18. Para atingir tais metas é necessário recuperar o déficit histórico no que diz respeito a planejamento, infra-estrutura, pessoal e marco regulatório nas instituições públicas do Brasil. O REUNI trouxe implicações para a arquitetura curricular da formação universitária via Bacharelado Interdisciplinar e repercutirá a curto e médio prazo, nos diplomas dos formandos, ou seja, na formação da classe trabalhadora que está sendo educada para o desemprego. O incremento no aporte de recursos previstos via REUNI, de aproximadamente 20%, para as “novas iniciativas”, não é suficiente para recuperar, manter e ampliar o já existente e recuperar o déficit históricos de investimentos em infra-estrutura e pessoal docente e técnico administrativo.

Quanto ao ensino básico que abarca da educação infantil ao ensino médio, o banco de dados divulgado pelo MEC sobre o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) 2008 que contém 32.923 instituições demonstra a catástrofe educacional do Brasil. Confirma-se o fosse entre regiões, as piores colocações ficaram concentradas nas regiões Norte e Nordeste. Os piores Estados na prova do MEC de 2008 foram classificados por terem menos de 15% de suas instituições de ensino com notas superiores à média nacional, entre eles encontra-se a Bahia. Os dados do desempenho por escola no Enem 2008 revelam que 74,3% das instituições de ensino tiraram notas inferiores à média obtida pelos estudantes no país - que foi de 50,52 pontos em 100 possíveis. Esse percentual representa um conjunto de 19.354 instituições - outras 13 mil ficaram na média. Superaram a média nacional 6.651 colégios, em um total de 26.018.

Quanto à problemática dos professores os estudos encomendados pelo próprio Ministério da Educação revelam que do total de 1,8 milhão de professores que atuam na educação básica, 382 mil ou 20% não possuem formação para dar aula. Tem professor que tem escolaridade inferior à de seus alunos no ensino médio. O Ministério da Educação lançou dia 29 de maio de 2009 a primeira etapa do Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica, projeto feito em parceria com 90 universidades e instituições federais de ensino superior do país. Participam dessa fase 21 estados. A iniciativa pretende formar, nos próximos cinco anos, 330 mil professores brasileiros que atuam nos ensinos infantil, fundamental e médio, mas não são graduados ou dão aula em disciplina diferente de sua habilitação específica. Para a abertura das 330 mil novas vagas em todo o país, as instituições federais de ensino vão receber recursos extras do MEC, num montante de R$ 700 milhões até 2011 e R$ 1,9 bilhão até 2014. O Programa do Governo prevê uma série de medidas para a “valorização do professor” entre as quais constam:

Qualificação - Os cursos para a formação de professores serão oferecidos por 90 instituições públicas de ensino superior a partir do segundo semestre deste ano. A iniciativa vai beneficiar professores que ainda não têm formação superior; professores formados que lecionam em área diferente daquela em que se formaram e bacharéis sem licenciatura, que não poderiam exercer o magistério. A responsabilidade será da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que vai receber mais R$ 1 bilhão por ano para a formação de professores.

Fies - Uma alteração na lei que regulamenta o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) vai permitir financiamento de até 100% da mensalidade dos cursos de licenciatura, com pagamento por meio de serviço como professor de escola pública, depois da conclusão do curso. Cada mês de exercício profissional representará abatimento de 1% da dívida consolidada, o que significa que será possível quitar o financiamento em pouco mais de oito anos. A medida também vai valer para quem obteve o financiamento antes do lançamento do plano.

Piso - Os estados que comprovarem não ter condições de pagar o valor integral do piso salarial dos professores, de R$ 950, podem receber verba complementar da União. O piso é destinado aos professores da educação básica para uma jornada de trabalho de 40 horas semanais.

Prova Nacional - Ainda em 2009, o MEC vai lançar a matriz de uma prova nacional para professores, que terá a primeira edição em 2010. A prova vai permitir a formação de um banco de professores, que poderá ser utilizado por estados e municípios para a contratação. O MEC também poderá definir nota mínima no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o ingresso em cursos de graduação para formação de professores. A exigência de que 70% da carga horária dos cursos de pedagogia seja dedicada à formação de professores também faz parte das medidas.

Carreira - Até o final do ano, governo federal, os estados, o Distrito Federal e os municípios devem elaborar planos de carreira para os professores e os profissionais da educação básica de suas redes. O plano deve contemplar itens como a formação inicial e continuada, o número de alunos por sala, o sistema de avaliação e a progressão funcional.

Quanto à carreira docente e a gestão universitária o Ministério de Planejamento Orçamento e Gestão propôs:

Estruturação de remuneração com pagamento por projeto para Docentes que estejam trabalhando com projetos de pesquisa e extensão:

- Mudança no conceito de “Dedicação Exclusiva”

- Criação de “Gratificação de Dedicação Exclusiva”

- Extinção da GEMAS, com incorporação ao Vencimento Básico.

- Regime de opção pela Gratificação de Dedicação Exclusiva semestral. Não optantes passam a ser Docentes em Regime Integral de 40 horas.

- Equalização do valor final da remuneração dos doutores, mestres e especialistas com a carreira de Ciência e Tecnologia.

Estruturação de remuneração por projeto para Docentes e Técnicos que estejam trabalhando com projetos de pesquisa, extensão e consultoria:

- Pagamento via SIAPE com receita própria de projetos, consultorias, etc.

- Deixa de receber a Gratificação de Dedicação Exclusiva ao receber remuneração por projetos com receita própria.

- Estrutura de cálculo previdenciário mantendo compatibilidade com remuneração de Professor em DE

- Cálculo de IRPF sobre o montante total pago pelo SIAPE

- Corte de valores no Teto Constitucional (R$ 24,5 mil).

Criação de núcleos de apoio à pesquisa, extensão e consultoria.

- Criação de estrutura de gerenciamento de projetos de pesquisa e extensão, nos moldes das Fundações de Apoio na estrutura das IFES.

- Criação do cargo de Gestor de Projetos.


Medidas são adotadas por governos e governantes e entre elas as que impactam diretamente as Faculdades e Institutos de Educação e seus cursos de Licenciatura em Pedagogia e demais licenciaturas. Estes impactos vão desde o processo seletivo, a reestruturação curricular, a expansão, ao financiamento, a carreira docente, até a gestão e administração. O REUNI, o ENEM como meio de selecionar para ingresso no ensino superior, o Sistema Nacional de Formação de Professores, as propostas para a carreira, são decretos presidenciais e ministeriais que impactam na autonomia universitária, atribuem um papel às universidades na implementação de políticas neoliberais e medidas compensatórias, segundo recomendações de organismos internacionais – FMI, BM, OMC, cuja finalidade última e expandir, mas, com contenção de gastos.

Urge posições criticas frente à avalanche que exigirá infra-estrutura, orçamento da união adequado, financiamento a altura do grande desafio, pessoal docente e técnico-administrativo bem remunerado, motivado, saudável e fundamentalmente, assistência estudantil compatível com as necessidades dos estudantes para ingressarem, se manterem e finalizarem com sucesso seus estudos.

O REUNI, o Primeiro Programa Nacional de Formação de Professores, a proposta para a Carreira docente com quebra da dedicação exclusiva e a criação de estrutura de gerenciamento de projetos de pesquisa e extensão, nos moldes das Fundações de Apoio na estrutura das IFES, trouxeram e trarão implicações para a arquitetura curricular da formação universitária, via Bacharelado Interdisciplinar, via reformulações curriculares, via gerenciamento de projetos e repercutirá a curto e médio prazo nos diplomas dos formados, o que implica um aporte de investimento nas Faculdades, Institutos e Centros de Educação das instituições públicas bem maior do que vemos atualmente. O incremento no aporte de recursos previstos via REUNI, de aproximadamente 20%, para as “novas iniciativas”, não é suficiente para recuperar, manter e ampliar o já existente e recuperar o déficit histórico de investimentos em infra-estrutura e pessoal docente e técnico administrativo.

Mas o problema não se resume somente a orçamento e gestão, diz mais. Diz respeito à necessidade de recompor as posições criticas, o pensamento critico, radical, de conjunto e de totalidade. Diz respeito a recompor os movimentos de luta social, independente de governos e governantes para pressionar e fazer com que os anúncios de medidas governamentais não acabem em si mesmas e que as medidas maiores que se fazem necessárias sejam efetivamente adotadas, implementadas, garantidas, porque isto diz respeito ao pensamento critico, ao financiamento da educação, a expansão ordenada e qualitativa da educação pública, autônoma, laica, socialmente referenciada em pleno aprofundamento da crise do capital.

Esta tarefa histórica, as Faculdades, Institutos e Centros de Educação não farão sós. Necessitam, sim, de fortes e destemidos pensamentos críticos, movimentos de luta social independentes, que devem ser recuperados, recompostos, criados, para superarmos os paradoxos, as ilusões da social democracia participativa e dos Fóruns Governamentais para a construção de consensos e fundamentalmente para arrancar toda e qualquer reivindicação que represente um avanço para a educação brasileira.

Assim como o capital, pela primeira vez na história, ainda segundo Mészàros, confronta-se globalmente com seus próprios problemas, que não podem ser “adiados” por muito mais tempo nem, tampouco, transferidos para o plano militar a fim de serem “exportados” como guerra generalizada, porque isto seria definitivamente o fim da humanidade, a educação em geral, em especial as Faculdades, Institutos e Centros de Educação não poderão ficar indiferentes. É neste sentido que o FORUMDIR não está indiferente, dirige-se a Lula e exige que as medidas anunciadas sejam profundamente discutidas e tenham, em sua melhor versão, garantias de implementação com aporte do Estado brasileiro. Dirige-se aos movimentos de luta social da classe trabalhadoras, as entidades, cientificas, de classe, associações que venhamos a nos recompor e voltar a defender, intransigentemente, educação de qualidade, em todos os graus e níveis, para todos os brasileiros.


Brasil, 01 de maio de 2009.

INFÂNCIA, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E EDUCAÇÃO INFANTIL SOB O ENFOQUE DA UNESCO: CONCEPÇÕES DIFUNDIDAS, PRÁTICAS FORMATADAS

INFÂNCIA, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E EDUCAÇÃO INFANTIL SOB O ENFOQUE DA UNESCO: CONCEPÇÕES DIFUNDIDAS, PRÁTICAS FORMATADAS



Altino José Martins Filho
Ana Claudia da Silva
Lourival José Martins Filho


As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul; que nem uma criança que você olha de ave.
(Manuel de Barros)



1. Localizando o tema e tecendo as primeiras considerações



Este artigo é fruto de um estudo sobre a concepção de Infância, Educação Infantil e Profissionalização para o magistério na primeira etapa da Educação Básica. Busca verificar o sentido atribuído para a infância, criança e o perfil profissional em um dos Cadernos Pedagógicos da UNESCO/2005. Este documento que está sendo utilizado na formação dos professores de educação infantil em muitos municípios brasileiros é composto por várias séries, no qual cada série corresponde a uma temática que problematiza o processo educativo e o trabalho docente na educação infantil. Nosso interesse de análise focaliza-se sobre o Caderno Pedagógico número 1 que recebe o titulo “Olhares das Ciências sobre as Crianças” sob a coordenação de Marlise Campos. Tecemos algumas observações críticas no intuito de contribuir amplamente com o processo educativo na educação infantil e com algumas concepções contemporâneas empregadas na própria formação de professores.
Nossa crítica caminha na direção de localizar nos destaques do texto alguns retrocessos referentes às concepções citadas, bem como, apontar para suas ligações com o movimento pós-moderno e as políticas públicas para a Educação Infantil. Principalmente as iniciativas das políticas neoliberais que apresentam uma interface com as propostas de educação do Banco Mundial, que na nossa compreensão, vem contribuindo progressivamente para a desqualificação do ato de ensinar, a negação da importância da apropriação do conhecimento e a desprofissionalização e descaracterização do professor da Educação Básica, neste caso o professor de educação infantil.
Nosso primeiro contato com o material analisado aconteceu quando fomos convidados por uma coordenadora do Departamento de Educação Infantil de uns dos municípios da região sul do país/Brasil. Neste caso, depois de um primeiro contato com o material, iniciamos uma análise profunda do que tais concepções poderiam significar para os profissionais que estão diretamente com as crianças nas instituições de Educação Infantil.
Assim, é importante salientar que em razão dos limites deste artigo, não analisaremos exaustivamente o documento em sua totalidade, iremos apenas destacar alguns excertos, os quais consideramos de fundamental importância para problematização da temática evidenciada.
Para tanto, este artigo divide-se em três partes: a primeira está dedicada a uma breve exposição e contextualização do Programa do Fundo do Milênio para a Primeira Infância, programa este subsidiado pela UNESCO; na segunda parte apresentaremos, a partir dos destaques do texto analisado, alguns elementos para problematizar a concepção de infância, educação infantil, criança e profissional que perpassam os ideários da formação de professores propostos pelo programa, já na última parte, trazemos algumas reflexões conclusivas, mesmo que de forma preliminar, sobre as questões trabalhadas ao longo de todo o artigo.

2. Contextualizando o “Programa Fundo do Milênio para a Primeira Infância”: proposições entrelaçadas a concepções



O Programa Fundo do Milênio para a Primeira Infância é uma iniciativa conjunta do Banco Mundial, UNESCO Brasil e Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho. O programa defende como premissa que o acesso à educação de qualidade, nos primeiros anos de vida, é essencial para o desenvolvimento sustentável e com eqüidade social de uma nação. Dessa forma, conforme afirma seus representantes, a UNESCO com suas parcerias pretende possibilitar as crianças de até seis anos, pertencentes a famílias de baixa renda, uma infância melhor por meio de uma educação infantil de qualidade que lhe garanta no presente e no futuro novas oportunidades.
O Programa difundido por todo o país, apresenta três objetivos principais: 1) Contribuir para uma educação infantil de qualidade que garanta à criança oportunidades de brincar e aprender, de ampliar seu universo cultural, de se socializar e de construir valores positivos, ou seja, de vivenciar uma infância melhor; 2) Qualificar o atendimento prestado por creches e pré-escolas comunitárias e filantrópicas às crianças de 0 a 6 anos; 3) Propiciar a capacitação de professores e dirigentes das escolas infantis selecionadas, bem como viabilizar a aquisição de materiais pedagógicos e equipamentos, através da instalação de mesas educadoras nos municípios.



3. Alguns Elementos para problematizar a concepção de Infância, Formação de Professores e de Educação Infantil a partir do caderno pedagógico “Olhares das Ciências sobre as Crianças” – UNESCO/2005


Com base nos destaques do texto e de sua análise foi possível verificar três categorias que serão discutidas neste artigo referentes à concepção de infância, criança, professor e educação infantil. Cabe lembrar que os aspectos aqui levantados pretendem desenvolver reflexões no sentido de rever a condição das crianças na vida social, cultural e educacional. Questões que implicarão rever também o papel da formação do sujeito humano na própria sociedade, sujeitos que estão imersos nas construções culturais, sendo influenciados por essas construções e influenciando-as.
Assim, o que nos provoca nas análises é que estes sujeitos são crianças ainda pequenas, vivendo a primeira fase da categoria geracional infância. Porém, sujeitos humanos de pouca idade, mas com grandes possibilidades para recriarem a todo o momento o mundo, ao invés de simplesmente atuarem como receptáculos de papéis e funções sociais.
Nesta lógica estaremos reconhecendo a especificidade de cada sujeito humano, e a infância sendo considerada enquanto uma categoria geracional com valor no presente, e não mais somente uma preparação para o futuro.
Convém esclarecer que o conceito de geração não pode ser entendido como momento de transição de uma idade infantil a adulta. Se ela for pensada assim, as outras gerações também são de transição, temos que olhar como um continuo, e não mais pautados na negatividade e na falta.
Ressaltamos que as categorias evidenciadas neste artigo, estão sendo anunciadas pelas produções teóricas do campo da educação infantil. Nossa intenção é trazê-las, para descortinar alguns equívocos, interrogações e interpretações aligeiradas que se criaram, já que compreendemos que ainda não estão suficientemente problematizadas, o que, em nossa opinião, por sua vez, influencia e caracteriza a prática pedagógica nas próprias instituições.

3.1) Concepção de Criança: entre a pureza e a inocência; entre o social e o humano



Ao nos referirmos a criança como um ser humano completo, em desenvolvimento – como todos os demais seres humanos – e, por conseguinte, possuidor de todas as potencialidades concernentes ao humano no seu processo de constituinte e constituidor da história e da cultura, parece que estamos falando obviedades.
Contudo, é sempre bom salientar que aquilo que consideramos óbvio precisa ser muitas vezes explicitado de modo que não se torne naturalizado, a-histórico, mitificado, procurando garantir, ao contrário, a possibilidade da mutabilidade, da transformação, da compreensão da história como produto do trabalho humano.
Neste sentido, trazemos aqui para a reflexão alguns destaques presentes no caderno pedagógico produzido pela UNESCO em análise neste artigo, que a nosso ver, conforme já explicitado anteriormente, precisam ser problematizados uma vez que evidenciam concepções que tendem a naturalizar e a singularizar, estes sujeitos históricos e plurais: as crianças.
Um dos aspectos que vale aqui salientar é a concepção de criança explícita – e também implícita – presentes em alguns trechos do caderno da UNESCO que nos remetem a discussões já tecidas no campo educacional ao longo de algumas décadas, no sentido de superar algumas compreensões que deslocavam a criança como ser humano constituído socialmente para a esfera da mitificação e da predestinação genética. Nesta direção, procurando trazer mais dados para nossa análise, destacamos alguns excertos do caderno em questão que, a nosso ver, nos impulsionam para a problematização da concepção de criança aí abordada.
Ao explicitar os propósitos da construção de um texto que aponte o entendimento acerca do que se entende por criança, destaca-se do caderno da UNESCO, as seguintes justificativas:

O que queremos é conhecer a criança que é a pureza maior, o início de tudo. (...) Mas o que nos traz a criança quando chega? Ela traz sua herança, sua vontade de viver e de ser feliz (...) Embora haja toda essa energia que vem da infância, que vai questionando, exigindo, querendo, a criança busca encontrar em todos que a cercam o reflexo da alegria, da pureza, da esperança e da fantasia que traz em sua essência (p. 11-2).

O excerto acima traduz a concepção de criança calcada na idéia de natureza infantil, ressaltando a visão idílica de uma criança que representa somente a bondade e que busca também esta bondade entre os que a cercam. Além disto, sublinha um modelo de sociedade onde a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso, pela “felicidade ou infelicidade”, recai essencialmente num processo de culpabilização do indivíduo, desconsiderando os processos sócio-históricos, culturais e políticos que a constituem. Reforça-se, também, a idéia de “essência” humana intimamente ligada ao conceito de “herança” traduzida nos valores sociais que a criança já traz consigo ao nascer. Herança esta que deve ser cuidada, perpetuada, para que a sociedade “viva feliz” e continue reforçando – também com todo cuidado – a manutenção do statu quo.
Retomando a questão da natureza infantil, Bernard Charlot (1979) esclarece que esta concepção de natureza influenciou decisivamente a constituição da Pedagogia da Escola Tradicional e da Pedagogia da Escola Nova, pedagogias estas cujas principais idéias ainda hoje marcam forte presença no campo educacional. Ambas partem da idéia de que a criança seria possuidora de uma natureza infantil, que poderia ser essencialmente má – no caso da Escola Tradicional – ou essencialmente boa – como se acreditava na Escola Nova. Boa ou má, a concepção de natureza infantil escamoteia a idéia de construção social da infância, naturaliza o que é social, desconsiderando a criança como produto e processo de múltiplas relações. Para Charlot (Op. cit., p. 107-9):

A criança não é, por natureza, ao mesmo tempo inocente e má. Tem confiança no adulto, ama-o, mas responde agressivamente às frustrações, ás vezes inevitáveis, aliás, que o adulto e a sociedade lhe infligem. A criança não é, por natureza, perfeita e imperfeita, independente e dependente. Tem necessidade do adulto, imita-o, toma-o por modelo, mas, ao mesmo tempo, necessita libertar-se de sua necessidade de adulto e afirmar, sem cessar, sua especificidade e autonomia. A criança não é, por natureza, herdeira e inovadora. Sua personalidade se constrói sob a influência da ação dos adultos e da sociedade; a criança não pode abster-se destes, mas, por essa mesma razão, não pode, ao mesmo tempo, não querer abster-se deles e é inevitavelmente levada a rejeitar algumas dessas influências. (...) Se a imagem da criança é contraditória, é precisamente porque o adulto e a sociedade nela projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas (...) A criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles próprios, ser e temem tornar-se.

A concepção de natureza infantil traz ainda em seu bojo, conforme assinala Charlot, a idéia da criança como projeção de uma sociedade em “vias de ser“. Este entendimento também está presente no caderno pedagógico da UNESCO em questão, onde podemos encontrar preocupações com o futuro que envolve a criança como, por exemplo: “Há urgência em revisar valores, em revigorar visões positivas para o futuro” (p. 15).
Nesta direção, retrata-se a concepção de criança como um “vir a ser” – “algo” (pois ainda não muito bem definido, um “anjo” talvez?!) que busca ser “alguém”. Cabe aqui as reflexões de Arroyo (1996) quando explicita que antes de nos preocuparmos com o que a criança será no futuro, devemos lançar nosso olhar sobre o seu presente, pois, “em nome de um dia chegar a ser um grande homem, um adulto perfeito, formado, total sacrificamos a infância, a adolescência, a juventude (...) Em nome de um dia ser, não deixamos que a criança seja no presente”.
Gostaríamos ainda neste sentido, de deixar para reflexão a seguinte questão: Será que na direção em que responsabilizamos somente às crianças pelo futuro da sociedade, não estaríamos também desresponsabilizando e desqualificando os adultos como seres capazes em também construir este futuro?
São muitas as questões, tantas quanto às concepções aqui brevemente analisadas. Cabe pensarmos que estas não se traduzem em meras idéias: evidenciam posturas no modo como são formados os profissionais da educação e educadas nossas crianças. Pensamos nas crianças como seres humanos do presente ou como “telas de projeção”? Salientamos aqui, as oportunas palavras Kennedy (2000, p.153) quando explicita que “quanto mais os adultos conseguem reconhecer que o ciclo da vida humana envolve uma interação entre ‘adulto’ e ‘criança’, menos estão propensos a ver a infância como algo a ser superado ou erradicado, e são mais capazes de relacionar-se com as crianças como pessoas, e não como se elas fossem telas de projeção”.



3.2) Produção Cultural das Crianças: as resignificações das crianças acerca do mundo


São abundantes os trabalhos na área da educação infantil que fazem referência às produções das culturas infantis. Assistimos claramente posições teóricas que colocam as crianças no centro do processo pedagógico, ou seja, como se fosse possível as próprias crianças trazerem o elemento novo por si só, idealizando uma educação para esta faixa etária centrada em si mesmo. Este é o ponto que criticamos, já que não concordamos com o libertarismo apregoado pela Pedagogia Nova, a qual propõe que o ensino pertence ao próprio aluno, deixando-o em um espontaneismo natural. Que para nós não deixa de ser uma forma de autoritarismo na cultura escolar.
Por outro lado, não discordamos da afirmação de uma abordagem que toma crianças como sujeitos ativos, históricos e produtores de culturas. Porém, conectado a dinâmica complexidade social e cultural que os envolvem. A partir de uma abordagem histórico-social (SAVIANE, 1985), defendemos que o ser humano se constitui como síntese de múltiplas determinações (MARX,1974), estando seu desenvolvimento e sua própria humanidade interligados a um conjunto de relações sociais.
Nesse sentido, estamos conectados a uma corrente de pensamentos que apontam para o papel ideológico burguês desempenhado pela educação tradicional, ainda muito presente, seja no discurso pedagógico ou nos documentos oficiais. Nosso intento, portanto, é romper com a manutenção da hegemonia burguesa no campo educacional, por meio da incorporação da perspectiva histórico-social ao universo do trabalho educativo.
Nesse contexto, localizamos as contradições presentes no Caderno Pedagógico número 1, referentes à concepção de criança como produtora de culturas. Diz a autora no referido texto:

O que hoje sabemos sobre o modo como crianças elaboram seus contextos de desenvolvimento é através de formas criativas de dar significado ao mundo que as recebe e de pensar sobre si mesmas. Esse é o impulso que as leva a manifestar audaciosas maneiras de sentir, emocionar-se e maravilhar-se diante de tudo o que o mundo lhes oferece. Assim, nessa dialética com o mundo adulto, vão desbravando horizontes, pensando, crescendo e construindo cultura (CAMPOS, 2005, p. 12).

Note-se que nessa passagem aparece com clareza o pensamento veiculado pela produção teórica no campo da educação infantil, que acima afirmamos estarem equivocadamente supervalorizando as produções das crianças, alimentando uma fetichização da infância (DUARTE, 2004; ARCE, 2004). No destaque do texto, localizamos uma concepção de produção cultural que nos parece ambígua e contraditória. A armadilha que a autora se envolve, aparece claramente nestes dois trechos do excerto destacado: “Impulso que leva [as crianças] a manifestar audaciosas maneiras de sentir, emocionar-se e maravilhar-se (...); [As crianças] vão desbravando horizontes, pensando, crescendo e construindo cultura (...)”. O que a princípio nos parece apontar para uma visão crítica da educação, acaba sendo aniquilada no conjunto do pensamento desenvolvido pela autora. Em nossa opinião, não nos parece aceitável o discurso que as crianças se maravilham, emocionam, sentem, pensam e crescem simplesmente porque estão em contato com o mundo e a cultura. A extremada valorização da relação criança x mundo e criança x criança, sem a mediação qualificada dos adultos, nos incomoda e desagrada muito, já que as crianças não vivem em um vazio social e não estão num mundo à parte dos adultos. Isso quer dizer que o desenvolvimento cultural da criança, mais do que inserção dela na cultura, é inserção da cultura nela para torná-la um ser cultural (PINO, 2005, p.155), desta forma as fragilidades e turbulência do mundo atual também são vividas pelas crianças.
Neste caso, valorizar e se ater à prática cultural das crianças em sua singularidade, não significa desvinculá-la das determinações sociais mais amplas, é sim a possibilidade de poder entender essa especificidade – essa produção cultural – que para nós significa expressão de uma totalidade maior. Assim, o fato de buscarmos superar as concepções que centram exaustivamente o foco no ensino e no professor, não pode nos levar a uma negação da presença do professor e do processo de ensino-aprendizagem entre adultos e crianças, ou vice versa. Nossa compreensão está apoiada no que Duarte (2003, p.35) descreve:

Não existe uma essência humana independente da atividade histórica dos seres humanos, da mesma forma que a humanidade não está imediatamente dada nos indivíduos singulares.

A partir desta citação, é importante esclarecer, que nossa crítica está diretamente vinculada às idéias difundidas recentemente pela ânsia de afastar os antigos fantasmas do ensino para a educação das crianças pequenas. O desafio é não subestimar as crianças considerando-as incapazes, nem superestimá-las atribuindo-lhes comportamentos muito além de suas capacidades e condições emocionais. Isto nos levaria a um desamparo, abandono ou na exigência de um comportamento de quem ainda não o tem para oferecer, pois consideramos que, assim, estaríamos negando a proteção da criança frente ao mundo exigente e difícil.
Afirmar que as crianças são (re)produtoras de culturas, sujeitos ativos nos processos sociais que as convertem num ser humano, é diferente de considerá-las atores de seu próprio destino, supervalorizá-las em si mesmo ou cair numa superexposição dos pequenos meninos e meninas. Não é possível aceitar que as crianças sejam confinadas a um isolamento do universo cultural mais amplo. Todavia, extrapolar as concepções que abreviam, dicotomizam, polarizam e adjetivam a produção cultural das crianças, é mostrar as várias facetas da complexidade e da variação da cultura universal humana, a qual as crianças não estão isoladas e nem excluídas. Portanto, a mediação e a interação do Outro é condição necessária para que a criança se aproprie da variação da cultura humana, desenvolvendo a partir de suas relações sociais as máximas qualidades humanas.
Em nossa compreensão consideramos que crianças e adultos são seres múltiplos e em constante formação. Incompletos e dependentes. Portanto, é necessário superar o mito da pessoa autônoma e independente, como se fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de interdependências (DELGADO e MÜLLER, 2005). Em relação às crianças, não abrimos mão do fato de que são seres em formação e que, por isso, necessitam do cuidado, proteção, atenção, de um desenvolvimento educacional de adultos frente aos desafios do mundo.
Não vamos nos enganar deixando-nos seduzir pelo “canto da sereia”, pois estamos circunscritos em uma crise de autoridade e por isso necessitamos recuperar a figura do professor no ambiente educacional, já que não é possível, no nosso entender, delegar aos pequenos a tarefa de conduzir o rumo das coisas, seja no processo educacional, social ou cultural. A tendência observada no Documento produzido pela UNESCO, é de um mundo perfeito, igualitário e com condições de desenvolvimento pleno para todos os sujeitos. Não nos parece com o mundo em que estamos inseridos, no qual a desigualdade social, econômica, cultural e educacional exclui o sujeito, impedindo-o inclusive de viver sua própria vida. Em outros termos, as desigualdades é que determinam, em grande medida, as possibilidades que cada sujeito tem de acesso aos bens culturais, sociais, materiais e educacionais, a nosso ver, bens necessários para a própria existência humana.
A contradição que perpassa toda a sociedade capitalista contemporânea e que se faz presente no campo educacional nos mostra explicitamente quão variáveis pode ser uma produção cultural, principalmente se considerarmos as condições reais em que os sujeitos estão inseridos. Portanto, sabemos que a história social humana, a geral e a particular de cada sujeito, é feita de relações sociais conflituosas produzidas por sistemas sociais criadores das próprias desigualdades que se efetuam entre os homens desde a mais tenra idade.

3.3) Concepção de Professor e Educação para a Educação Infantil: de cuidador a educador ou cuidador e educador?



Sabemos que a exigência de formação para o magistério é muito recente na história da educação infantil brasileira. Tal exigência foi introduzida legalmente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1998 e da Lei de Diretrizes e Bases – LDB, Lei N. 9.394 de 1996. Definindo-a como primeira etapa da educação básica, um direito das crianças e dever do Estado. No entanto, compreendemos que isso não garante a qualidade tão almejada.
Na perspectiva da profissionalização, o documento analisado indica uma diferenciação entre o educador e o cuidador. Vimos nesta indicação um retrocesso em relação ao que já foi construído pelo campo teórico da infância. Afirma a autora que:

(...) muitas vezes o professor e o cuidador que lá encontram tornam-se, para elas, os adultos mais importantes e os melhores modelos. Para a grande maioria dessas crianças, esses adultos tornar-se-ão o saudável referencial para suas possibilidades de crescimento de auto-estima, de sucesso, de respeito e até mesmo como padrões de paternidade e de alegria de viver. Para as outras, somam-se a isso lembranças de carinho, amor e ternura” (CAMPOS, 2005, p. 13).

Evidenciamos a partir deste excerto uma concepção de profissional para a infância no qual o que basta é amor á profissão, dedicação, ternura, carinho..., como se isto bastasse para formar um profissional qualificado e compromissado com o processo educativo. Concordamos que o processo de profissionalização na educação infantil ainda está sendo gestado, devido principalmente à precariedade que caracteriza historicamente o atendimento como ação emergencial e caritativa.
Neste caso, mesmo compartilhando da abordagem apregoada pela perspectiva italiana, para a qual aspectos acerca do trabalho docente e a idéia de que a profissão de professor(a) na educação infantil está sendo inventada, não é possível alimentar a idéia que exista uma separação entre as funções de cuidado e educação, desenvolvida pela autora. Percebemos explicitamente no excerto algo que durante mais de vinte anos a área da educação infantil vem superando, ou seja, a dicotomia entre educar e cuidar.
Uma outra questão que o documento aponta, é uma concepção de professor centrada na prática e na maternagem. Em nossa opinião, tal discurso tende a minimizar a importância da formação teórica, o que por conseqüência diminui a complexidade da profissão de ensinar, favorecendo para um espontaneismo naturalizado e excluindo os diversos conhecimentos para o campo da educação na infância. Portanto, quando a autora define a profissão como – somam-se a isso lembranças de carinho, amor e ternura – descrevendo-as como as principais características da profissão, sustenta a idéia que amor, afeto e prazer bastam para ser profissional da infância, desmotivando com isto a essencial e constante busca de aprimoramento profissional. Neste caso, subordina a busca de formação e profissionalização. Tal processo inclusive desconsidera que uma formação de qualidade supõe;

Uma bagagem filosófica, histórica, social e política, além de uma sólida formação didático-metodológica, visando formar um profissional capaz de teorizar sobre as relações entre educação e sociedade e, aí sim, como parte desta análise teórica, refletir sobre sua prática, propor mudanças significativas na educação e contribuir para que os alunos tenham acesso à cultura resultante do processo de acumulação sócio-histórica pelo qual a humanidade tem passado (ARCE, 2001, p.267)

O conhecimento é condição necessária, embora não suficiente, para o professor desenvolver um trabalho educativo intencional e refletido, que possibilite o desenvolvimento da consciência crítica, ou seja, o professor tem a função primordial de procurar superar as limitações de caráter biológico e/ou social, impostas aos educandos, tornando-os, cada vez mais, seres humanos ricos de necessidades, capacidades e prazer.
Nessa perspectiva, há que se fazer uma análise crítica detalhada e aprofundada dos atuais preceitos da formação dos profissionais da educação, bem como, das concepções filosófica-pedagógicas presentes nos processos educativos. Como alerta Arce (2005, p. 59), é preciso que a formação dos professores contemple as diversas áreas do conhecimento humano para que a sua cultura seja vasta. Fornecendo-lhe assim elementos para que possa ensinar os alunos, possibilitando-lhes enxergar a humanidade, seus anseios e necessidades e não somente os seus próprios interesses imediatos.
Neste rol, veiculamos a idéia que coloca a criança como capaz de aprender e (des)construímos o que se achava que acontecia naturalmente. Sendo a aprendizagem, a construção da cultura, a formação humana – atividade social que se dá desde o nascimento, precisando ser mediada por parceiros mais experientes e qualificados para travar relações positivas e de sucesso com esta criança... Este parceiro experiente irá estabelecer relações e aprendizagens com este Outro- Criança-Sujeito, apresentando o mundo para ela. Temos, portanto, procurado compreender as especificidades do aprender, ou seja, as formas pelas quais os seres humanos nas diferentes idades desenvolvem o aprender. Sendo a creche, a pré-escola, a escola, lugar privilegiado da infância e de traçar processos intencionais de ensino e de aprendizagem.
Por meio da concepção de profissional e educação difundida pelo documento analisado, observamos que a educação infantil deve estar voltada para os cuidados físicos, corporais e espirituais. Uma educação relacionada e reduzida às pequenas ações que reproduzem atitudes higiênicas pela assimilação às normas sociais de civilidade, disciplina e controle. Como mostra este outro excerto:

Há urgência na transformação da realidade humana. Toda essa urgência nos coloca à frente de um grande desafio, o desafio de atuar sobre a educação do indivíduo e de colaborar para a formação de uma sociedade fundamentada nos mais altos princípios espirituais, os valores eternos e as virtudes universais ( CAMPOS, 2005, p. 15).

Compreendemos que para desenvolver uma concepção de infância possuidora de direitos, produtora de culturas, pautada no desenvolvimento das máximas qualidades humanas – é preciso pensar para além do amor, ternura, dedicação e carinho – é preciso financiamento para os programas educacionais, políticas públicas consistentes e articuladoras, remuneração adequada, carga horária digna, condições de trabalho, propostas de formação para os professores no âmbito Estatal ou de cunho mais institucional, definição dos objetivos do trabalho docente e aprofundamentos acerca do caráter educacional-pedagógico.
Para tanto, é importante constituir referenciais teórico-práticos para projetos e ações educativas que superem criticamente o modelo familiar, higienista, educacional-assistencialista e educacional-escolar (calcado na lógica burguesa de educação), o que implica considerar a criança em suas especificidades, necessidades, interesses e expectativas, tratando-a como sujeito ativo, capaz de interagir com o mundo e com as pessoas desde o seu nascimento, que se apropria da cultura e produz história.
Assim, para superar a metáfora da mãezona (somam-se a isso lembranças de carinho, amor e ternura – como define o texto) e delinear uma especificidade para a educação de crianças pequenas intensificam a complexidade da profissão de ensinar, exigindo do/a professor/a uma atuação intencionalmente planejada e avaliada, o que supõe o domínio de diversos conhecimentos nos diferentes campos das ciências.
Ao analisar as concepções de educação e infância identificamos que o amor, o carinho, a ternura, ou seja, os princípios espirituais ou afetivos no trabalho educativo são identificados como dimensões humanas, que compõem a vida e as relações das pessoas e não podem subordinar, dispensar ou substituir a busca pela formação e profissionalização do profissional da educação infantil.
Não podemos concordar ou legitimar modelos femininos de domesticidade, de boa mãe, de mulher doce, ingênua, generosa, paciente - como sendo o único perfil para a construção da identidade da profissional da infância – o perfil profissional para além da “natureza feminina” é construído e constitutivo do processo formativo e no exercício profissional da docência.
Por meio da formação acontece o crescimento e o desenvolvimento do profissional, a apropriação de conhecimentos específicos, conceitos definidores da profissão, hábitos, valores e atitudes. Reafirmamos que ser professor na infância é algo a ser construído, vai muito além de uma naturalização da profissão. Ultrapassa, portanto, a concepção de que o trabalho é um dom, uma vocação inata e inerente da mulher, como tarefa de tias.
Para refletir: Será que lendo criticamente o texto que compõe este caderno pedagógico, é possível perceber que já superamos a metáfora da mãe educadora nata ou apenas revestimos e dissimulamos as velhas concepções com as teorias atuais?
Não estamos querendo desqualificar o “caderno pedagógico”, procurando culpabilizar a atuação da UNESCO no campo da Educação Infantil, já que tais concepções estão dadas historicamente. Ao contrário, as elucidações das contradições identificadas nos excertos do texto são colocadas como necessárias para a superação de algumas concepções e a constituição de uma práxis educacional emancipatória.
Para finalizar este texto e reafirmar nossa dimensão otimista sobre a profissão professor, vamos findar nossas reflexões com uma citação de Cardoso (2004, p. 272).

Resistir, abrir o espírito, instruir-se, recusando os simbolismos, a massificação, abrir-se para o novo, buscar fazer de outro modo, é preciso: armar-se e ir para a luta! (Grifos da autora)

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